Benvinda Margarida
Há letras e poemas que fazem parte do meu imaginário desde que me lembro de mim. São parte de quem sou. Representam um filtro involuntário e, na maior parte das vezes, inconsciente da realidade.
Fazem-me lembrar a minha avó Benvinda, mulher complexa e emancipada, caprichosa e revolucionária à sua medida. Separou-se do meu avô aos 40 e veio viver para Lisboa para ficar perto dos filhos, presos por questões políticas que ela se esforçou por compreender.
Chamava-se Benvinda Margarida. Contou-me tantas vezes que no dia do seu baptizado o padrinho, atrasado, quando chegou à Igreja gritou: "Ora seja Benvinda a Margarida!... Pois vai ser esse mesmo o seu nome!"
Sózinha, anos mais tarde, na sua casa em Benfica, a minha avó coleccionava recordações que trazia das inúmeras viagens, livros e discos, todos armazenados aleatóriamente num plano temporal sem fio onde tudo se misturava. Perdeu a medida do tempo e revivia sofrimentos a alegrias passadas como se pela primeira vez os sentisse.
Nas tardes que lá passei, em que ela se esforçava por ser a avó que já ninguém esperava que ela fosse, partilhava comigo alguns desses discos e memórias. De entre todos, há um poema que ainda hoje me faz pensar nela:
Dão-nos um lírio e um canivete
e uma alma para ir à escola
mais um letreiro que promete
raízes, hastes e corola
Dão-nos um mapa imaginário
que tem a forma de uma cidade
mais um relógio e um calendário
onde não vem a nossa idade
Dão-nos a honra de manequim
para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos um prémio de ser assim
sem pecado e sem inocência
Dão-nos um barco e um chapéu
para tirarmos o retrato
Dão-nos bilhetes para o céu
levado à cena num teatro
Penteiam-nos os crâneos ermos
com as cabeleiras das avós
para jamais nos parecermos
connosco quando estamos sós
Dão-nos um bolo que é a história
da nossa historia sem enredo
e não nos soa na memória
outra palavra que o medo
Temos fantasmas tão educados
que adormecemos no seu ombro
somos vazios despovoados
de personagens de assombro
Dão-nos a capa do evangelho
e um pacote de tabaco
dão-nos um pente e um espelho
pra pentearmos um macaco
Dão-nos um cravo preso à cabeça
e uma cabeça presa à cintura
para que o corpo não pareça
a forma da alma que o procura
Dão-nos um esquife feito de ferro
com embutidos de diamante
para organizar já o enterro
do nosso corpo mais adiante
Dão-nos um nome e um jornal
um avião e um violino
mas não nos dão o animal
que espeta os cornos no destino
Dão-nos marujos de papelão
com carimbo no passaporte
por isso a nossa dimensão
não é a vida, nem é a morte
Natália Correia
A minha avó morreu há um ano.